O e-commerce brasileiro vive um momento de expansão acelerada, consolidando-se como um dos mercados digitais mais promissores do mundo. De acordo com a ABComm, o faturamento projetado para 2025 é de R$ 224,7 bilhões, superando o ritmo de crescimento de mercados maduros como América do Norte e Europa Ocidental. No entanto, o estudo do Google FlashBlack Edição 2025, que analisou a performance dos 31 maiores varejistas do país durante a Black Friday, revelou fragilidades estruturais: 65% apresentaram algum tipo de falha técnica na jornada de compra. 

Esse dado evidencia uma lacuna entre o potencial de mercado e a capacidade operacional do setor, especialmente no uso estratégico da Inteligência Artificial (IA). Enquanto consumidores já utilizam a tecnologia para orientar suas compras e varejistas declaram intenção de investir mais na área, a aplicação prática ainda é limitada.

O gráfico a seguir ilustra de forma clara que essas falhas não são casos isolados, mas problemas recorrentes que se repetem em diferentes etapas da jornada do cliente. A leitura desse panorama torna ainda mais urgente a análise detalhada que se segue, mostrando como a IA pode ser decisiva para transformar crescimento em lucratividade e fidelização.

Dignóstico da Jornada de Compra - Apresentação das principais falhas

A Primeira Impressão: Fragilidades no Início da Jornada de Compra

O início da jornada de compra é determinante para o sucesso de uma transação online e, no e-commerce brasileiro, esse momento ainda apresenta falhas graves. Durante a Black Friday, o FlashBlack Edição 2025 identificou que 32% dos e-commerces sofreram timeouts — erros que impedem totalmente o acesso do usuário ao site. Esse problema, comparável a uma loja física com as portas fechadas em pleno horário comercial, não ocorreu apenas no pico de demanda, mas também em outros períodos analisados, revelando incapacidade estrutural para lidar com o tráfego. Além disso, 35% dos varejistas não conseguiram carregar seu conteúdo principal dentro do tempo ideal de 2,5 segundos, medido pelo Largest Contentful Paint (LCP), métrica que avalia quando o elemento mais relevante da página — geralmente a imagem principal ou o banner de promoção — aparece na tela. Mesmo que todos exibam rapidamente algum elemento visual para “dar a impressão” de velocidade, o atraso no carregamento do conteúdo importante frustra o consumidor e aumenta a taxa de abandono.

Para aqueles que conseguem acessar e começar a navegar, outro obstáculo surge: a instabilidade visual. O estudo mostrou que 42% dos varejistas apresentaram Cumulative Layout Shift (CLS) alto, problema que ocorre quando elementos da página “mudam de lugar” enquanto o usuário interage, levando a cliques acidentais ou operações erradas. Essa instabilidade, somada a bugs e falhas técnicas relatadas em 65% dos sites analisados, transforma a experiência de compra em um teste de paciência. Muitas dessas falhas estão associadas à chamada “dívida técnica” — acúmulo de problemas no código e na infraestrutura que não foram corrigidos ao longo do tempo, normalmente porque a empresa prioriza lançar novas funcionalidades e campanhas sem investir na manutenção da base tecnológica. O resultado é uma plataforma cada vez mais frágil, que compromete a confiança do cliente e reduz as taxas de conversão.

frustração ao adquirir um novo produto

Outro ponto sensível é a personalização da experiência, que no comércio eletrônico atual deixou de ser um diferencial e passou a ser um requisito básico. Apenas 42% dos e-commerces usam o histórico de navegação para oferecer recomendações personalizadas já na página inicial, enquanto só 13% conseguem apresentar resultados de busca adaptados ao perfil do cliente. Além disso, 52% deixam de sugerir produtos complementares na página do item, desperdiçando uma das estratégias mais simples e eficazes para aumentar o ticket médio. Esses números contrastam fortemente com o comportamento do consumidor brasileiro: 66,3% preferem comprar em sites que oferecem sugestões personalizadas e mais da metade já utilizou ferramentas de Inteligência Artificial, como o ChatGPT, para orientar decisões de compra. Ou seja, o público já está habituado a interações inteligentes, mas a maioria das empresas ainda entrega experiências genéricas.

Ignorar a personalização significa perder vendas não apenas no momento imediato, mas também no médio e longo prazo. Grandes players como Mercado Livre, Amazon e Shopee já utilizam motores de recomendação sofisticados que “aprendem” com o comportamento do usuário e oferecem interações cada vez mais relevantes. Ao não acompanhar esse padrão, um varejista passa a ser percebido como antiquado e desconectado das necessidades individuais, empurrando seus clientes para concorrentes que demonstram compreender melhor suas preferências. Mais do que uma questão de tecnologia, trata-se de manter competitividade em um mercado que cresce rapidamente e no qual a primeira impressão — formada nos segundos iniciais de navegação — pode determinar o sucesso ou fracasso de toda a jornada de compra.

O Meio da Jornada: O Abismo Entre a Intenção e a Descoberta

Superar os obstáculos iniciais de performance e estabilidade não garante que o consumidor concluirá a compra. No meio da jornada — etapa conhecida como “descoberta do produto” — muitos e-commerces falham em conectar intenção e conversão. O maior problema está na busca interna, que deveria ser o atalho para clientes com alto interesse de compra. Segundo o FlashBlack 2025, 58% das lojas não corrigem erros de digitação simples (ex.: “bluza” em vez de “blusa”), 65% não entendem buscas semânticas, ou seja, aquelas feitas de forma contextual, como “look para festa à noite”, e apenas 13% oferecem busca por imagem, recurso popularizado por ferramentas como o Google Lens. Essa deficiência transforma um ponto que deveria acelerar a compra em uma barreira, fazendo com que consumidores prontos para comprar abandonem o site.

A busca interna é o “vendedor” do ambiente online. Assim como em uma loja física o cliente descreve o que deseja e espera compreensão imediata, no digital ele digita ou fala o que procura e espera um retorno rápido e preciso. No entanto, a maioria dos varejistas trata esse recurso como um simples filtro de banco de dados, ignorando o padrão estabelecido por plataformas como Google e assistentes de IA. Hoje, consumidores pesquisam de forma conversacional, usando descrições complexas como “presente de Dia das Mães para quem gosta de jardinagem”. A falta de inteligência para interpretar essas buscas demonstra não apenas uma limitação técnica, mas também uma compreensão ultrapassada do comportamento do usuário moderno, que já está acostumado a interações mais inteligentes e fluidas.

Quando o cliente encontra o produto, a próxima etapa é a página de produto — momento crucial para gerar confiança. Porém, apenas 48% oferecem informações completas e só 32% investem em mídias imersivas, como vídeos, visualização em 360° ou realidade aumentada, que ajudam a “substituir” a experiência física. A prova social, fator determinante na decisão de compra, também é mal aproveitada: embora a maioria permita avaliações, somente 10% utilizam IA para gerar resumos dos comentários, poupando o consumidor de ler dezenas de relatos. Sem dados técnicos claros, conteúdo multimídia e resumos objetivos das avaliações, cria-se um vácuo de informação que aumenta a hesitação, abrindo espaço para que o cliente finalize a compra com concorrentes mais completos.

Por fim, o carrinho de compras, que deveria ser um dos pontos mais estratégicos da jornada, ainda é tratado de forma passiva. 65% dos e-commerces não enviam qualquer notificação para lembrar o cliente dos itens deixados no carrinho, mesmo diante de uma taxa de abandono de 83% na América Latina. Muitos consumidores usam o carrinho como lista de desejos ou espaço para “salvar para depois”, aguardando promoções ou condições melhores. Isso significa que um carrinho abandonado não é necessariamente uma venda perdida, mas uma oportunidade de conversão. Ao não adotar sequer automações básicas para retomar o contato — prática que pode ser feita com regras simples de marketing e IA —, o varejo desperdiça leads altamente qualificados e de baixo custo, deixando a receita na mesa.

A Reta Final: Onde a Fidelidade é Ganhada ou Perdida

A jornada do consumidor não termina com o clique em “comprar”. A fase pós-compra — que abrange logística e atendimento ao cliente — é o momento em que a promessa feita no ambiente digital precisa se materializar no mundo físico. É nessa etapa que a confiança é confirmada e a fidelidade construída. No entanto, falhas nesse estágio anulam todo o investimento em marketing e vendas, transformando experiências positivas em frustração. No FlashBlack 2025, os dados mostram que a etapa final ainda está repleta de gargalos, prejudicando desde a entrega até o suporte ao consumidor. Isso revela que, mais do que apenas vender, é preciso garantir que o produto chegue rápido, com transparência no processo e suporte eficiente caso algo dê errado.

O primeiro desafio é logístico, especialmente na chamada “última milha” — o trajeto final do produto até o cliente. Entre os 31 varejistas analisados, 29% não oferecem entrega em até um dia e 71% não permitem agendar horário, algo que 48% dos consumidores consideram decisivo. Apenas 3 conseguem validar endereços inválidos no momento da compra, prevenindo erros que causam devoluções ou atrasos, e 23% falham em fornecer data de entrega clara ou rastreamento funcional. No Brasil, onde 65% da carga depende do transporte rodoviário e os custos logísticos crescem, a entrega se torna campo de disputa competitivo. Marcas que encaram logística apenas como custo perdem a chance de convertê-la em diferencial estratégico capaz de gerar lealdade e recomendações.

O atendimento ao cliente, especialmente por chatbots, também apresenta lacunas significativas. Entre os 26 avaliados, quase metade não possui Processamento de Linguagem Natural (PLN), ou seja, não entende perguntas fora de um roteiro pré-programado. Apenas 2 aplicam análise de sentimento para detectar frustração, outros 2 interpretam mensagens de áudio, e nenhum atua como assistente de compras ou executa tarefas simples, como alterar um endereço de entrega. Pior: em transferências para atendentes humanos, a maioria perde o histórico da conversa, obrigando o cliente a repetir o problema. Isso contrasta com a expectativa de 72% dos consumidores, que veem o chatbot como essencial, e 74% gostariam que ele entendesse sua voz. Ao usar a tecnologia apenas para filtrar contatos, o varejo cria mais atrito; já quem a utiliza como ferramenta proativa pode transformar atendimento em motor de receita e fidelização.

Por fim, a acessibilidade digital continua sendo um ponto cego do e-commerce brasileiro. Apenas 13% dos sites atingiram pontuação ideal nesse quesito, e entre os aplicativos, só 5 oferecem recursos como leitores de tela, tradução em Libras ou conversão de texto em fala. Isso limita a experiência para milhões de brasileiros com deficiência — um mercado com grande potencial de consumo. Ainda há quem veja acessibilidade como nicho ou mera obrigação legal, quando na prática trata-se de ampliar o mercado total e fortalecer a imagem institucional. Em um cenário onde consumidores valorizam marcas com propósito, investir em acessibilidade é mais do que “fazer o certo”: é criar vantagem competitiva, conquistar lealdade e alinhar-se às expectativas de uma sociedade cada vez mais inclusiva.

Conclusão: Roteiro Estratégico para Fechar a Lacuna de IA em 2025

A análise da jornada do consumidor no e-commerce brasileiro revela um cenário paradoxal: um mercado em crescimento acelerado, mas travado por falhas operacionais recorrentes. A Inteligência Artificial (IA) se apresenta como a ferramenta mais prática e poderosa para eliminar esses gargalos, atuando diretamente na performance, experiência e fidelização. Hoje, empresas tentam capturar um mercado de R$ 224 bilhões com uma estrutura semelhante a um “balde furado” — perdas no topo do funil por lentidão, instabilidade e falta de personalização; no meio, por busca interna ineficiente e páginas de produto pouco convincentes; e no fim, por logística precária e atendimento pouco resolutivo. Embora líderes do setor planejem ampliar em até 73% seus investimentos em IA, falta clareza sobre como transformar esses recursos em melhorias tangíveis para o cliente.

Para fechar essa lacuna, é necessário adotar um roteiro de maturidade em IA estruturado em três níveis. O nível Fundacional corrige o básico, como busca com correção de erros, notificações de carrinho abandonado e estabilidade em picos de demanda. O nível Competitivo traz avanços, como busca semântica, personalização robusta e chatbots com Processamento de Linguagem Natural capazes de manter contexto. Já o nível Liderança de Mercado busca inovação, com assistentes de compras baseados em IA generativa, análise de sentimento em tempo real e uso de IA multimodal para prever tendências e otimizar estoques. A tabela a seguir resume o “gap” entre o que o consumidor espera e o que o varejo entrega:

Área de OportunidadeExpectativa do Consumidor (Baseado em Pesquisas)Realidade do Varejo (Baseado no Relatório FlashBlack)
Busca Inteligente“Quero que o site entenda o que procuro, mesmo que eu digite errado ou use linguagem natural.”Apenas 13% personalizam a busca por perfil; 58% falham com erros de digitação.
Atendimento via IA74% gostariam que agentes de IA entendessem sua voz; 72% consideram IA útil para um atendimento mais rápido.Apenas 2 de 26 chatbots entendem áudio; nenhum atua como assistente de compras.
Descoberta de Produto52% já usaram IA (ex: ChatGPT) para ajudar nas compras; 45% já usaram IA para descobrir novos produtosApenas 4 de 31 e-commerces possuem busca por imagem; apenas 2 de 20 usam IA para resumir avaliações.

Esses números reforçam que a transformação é urgente. Em todos os pontos analisados, a expectativa do consumidor supera em muito a entrega real do varejo. Isso significa que, mesmo com tecnologia madura e acessível, o mercado brasileiro ainda opera com recursos aquém do necessário para competir globalmente. A concorrência já está se movendo, os consumidores mudaram seus hábitos e a oportunidade é clara: quem implementar rapidamente este roteiro de maturidade em IA não apenas ganhará participação de mercado, mas também definirá o padrão de experiência do e-commerce no país.